Conferências e contos
Informação não tratada arquivisticamente.
Nível de descrição
Unidade de instalação
Código de referência
PT/BPARJJG/PSS/ML/025
Tipo de título
Atribuído
Título
Conferências e contos
Dimensão e suporte
1 capa, papel.
Produtor
Marcelino Lima.
Âmbito e conteúdo
1. O rascunho das conferências de Marcelino Lima: O Espírito Santo nos Açores; Poetas faialenses do século XVIII; Gente açoriana; Açores desconhecidos; Conferência proferida na Casa dos Açores em 1 de maio de 1943. 2. Conferências de Marcelino Lima publicadas no Telégrafo e no Correio da Horta: Centenário de Júlio Dinis; Um ilustre escritor faialense; Palestras ao microfone: 1640 no Faial; As ilhas dos Açores; À memória de Armando Narciso.3. Contos: Azul e branco; Conquista; O pombo; Quadro infantil; Guache de entrudo. Todos estes contos foram já publicados nos jornais. Segundo a relação dos contos, há ainda alguns inéditos: Flor rubra; O Manacitra; Maria Tola; José Henrique, sineiro. Estes últimos foram entregues à BPARJJG pela senhora Maria de Fátima Bettencourt Dart no dia 2014-07-07. ------------------------------------------------------------Quadro infantil. Bibi! Querida Bibi!... E fitando-a, imóvel e calada, as lágrimas caiam-lhe mansamente, magoadamente, como gotas silenciosas de orvalho, sobre as pequenas mãos rosadas esquecidas no regaço. Pobre Bibi! Linda Bibi! E deu-lhe um beijo carinhoso e triste. Se a amava tanto, tanto… Mas como foi aquilo? Como é que as suas mãos sempre tão cuidadosas se desajeitaram naquele momento, deixando-a precipitar-se de toda a medonha altura do segundo andar sobre as lajes do passeio? Como? Tanto acautelada que era quando lhe pegava, no vesti-la, em trazê-la ao colo entre os braços amorosos, aconchegada contra o peito, sob o caricioso roçar da sua face… Querida Bibi! E passando uma a uma todas as minúsculas peças dos fatos que costumava vestir-lhe, recordava as horas alegres, os longos instantes de contentamento gozados com a Bibi linda do seu coração. Esteve com este vestido no dia em que vieram cá a Isaura e a Delfina. Como nos divertimos! Durante o jantar esteve sempre sentada ao pé de mim, muito séria, muito quieta, como uma senhora bonita, com o seu guardanapo ao pescoço. Pôs-se-lhe um talher; e deitou-se-lhe sopa, carne, arroz… e vinho no copo… Até a Delfina fez um golpe muito grande quando descascava uma maçã. Credo! Aquilo é que era sangue! Foi preciso lavar-lhe o dedo em arnica e embrulhá-lo num pano, uma tira de pano branco, que a mãe amarrou depois com uma linha… Lembras-te Bibi?... As lágrimas deslizavam cada vez mais copiosas, lavando-lhe o rosto avermelhado. A saudade, essa dolente saudade do recordar, acrescentou-lhe mais a imensa amargura, que se desfez em fáceis soluços, soluços sentidos envolvendo toda a epopeia imaculada duma criança que sofre. Após largo tempo deste chorar abundante, ergueu-se. De mansinho, pé ante pé, como se temesse acordar a inerte Bibi, acercou-se da janela sobranceira à cidade e por onde entrava uma consoladora facha de sol. Espalhou melancolicamente a vista por cima do telhados escuros da casaria fronteira: como o cotovelo fincado no peitoril, a face reclinada na palma da mão, ficou-se demorando o olhar indiferente e vago… A manhã estava gélida e radiante; - manhã fria de janeiro. Um céu límpido, céu lavado, de vento norte, ostentava-se aberto sem uma única nuvem a macular-lhe o azul brilhante. O sol inundava-o, subindo devagar; deslumbrava – marchava sereno na amplidão fresca do espaço derramando toda a imensidade doirada da sua luz. As alvas empenas das casas, ainda com um certo viço da madrugada, assim iluminadas, pareciam feitas de neve e feitas de sorrisos. Na velha calçada da rua algumas pequenas poças de água refletiam bocadinhos do céu: e arrepiavam-se, tremendo de frio talvez, quando uma aragem branda as agitava ao de leve. Nos vidros suados pela vaporização tépida do quarto desenhava lentamente, inconscientemente quase, um avental arrendado, depois um chapéu com as suas fitas, as suas flores, uns sapatinhos de biqueira aguçada, com fivela e saltos esguios, à Luís XV. Passou uma lavandeira, num voo liso, soltando o seu chilro anunciador. Atravessava a rua um velhote, a andar, taque, taque, um passinho de jumento com um grande casacão a bater-lhe nas pernas e um chapéu de eras remotas enterrado até às orelhas. Seguiu com a vista aquela figura patusca, que nunca mais lhe esqueceu – pensando numa capa de menino preto que fizera à Bibi a semana passada. E o dedo rabiscava no vidro uma capa. Por sinal bordada a missangas e vidrilhos que ela comprara com a sua mão numa loja de quinquilharias… E o caixeiro? Ai, que garoto! Queria enganá-la mas ela não deixou. Com a esperteza petulante dos seus dez anos gritou-lhe de cá: «o dinheiro não está certo!» - e ele todo ruborizado, desculpando-se com um «é verdade» que não queria dizer coisa alguma, acabou de perfazer o troco junto da gaveta. O papá é que lhe deu o dinheiro; e a Maria Luísa, a costureira, que estava fazendo uma bluse para a mamã, foi quem a talhou e deu o risco pró bordado. E ficava-lhe tão bem, tão justa… Agora… Ah! Bibi, querida Bibi! E voltou a dar-lhe outro beijo dorido e lento. Pegou-lhe; estreitou-a contra o peito, agasalhando-a sob o cetinoso calor do seu rosto. E as lágrimas caíam-lhe mansamente, copiosamente, sobre as mãos rosadas, a tremerem de amor, naquele intenso abraço maternal…----------------------------------------------------------Guache de entrudo. Naquela terça-feira de folia e insipidez carnavalesca, ali na casa solene de Gil Vicente, ao Rocio, de entre as mil cenas do confuso, uma houve que me trouxe o sabor dum apólogo. Uma cena puerilmente bela e que (rimaria Cesário Verde) “e que, sem ter história nem grandezas, em todo o caso dava uma aguarela”. As máscaras eram às dezenas - um milheiro talvez. Corriam, rodopiavam, perseguiam-se, sob nuvens agressivas de confettis. Rolávamos pelas escadas, atoalhávamos corredores. E todos traziam à flor do rosto, a transbordar dos lábios e dos olhos sublinhados a batôn, a mesma felicidade das horas que se desperdiçam. Lá fora, a pacatez e normalidade citadina era tal que ninguém diria ser gorda terça-feira. Uma luz de primavera acariciava as gentes e caía como uma bênção sobre a gestação misteriosa da terra... Voavam alguns pardais procurando os ramos despidos da avenida... Gemiam no salão os violinos duma orquestra; no palco um jazz-band furioso torturava-nos o cérebro com o desmando americano dos seus estampidos. Mas as máscaras ainda queriam melhor, porque sapateavam e gritavam, soprando gaitas, chocalhando guizos e pandeiros, tocando rói-róis, cochichos, tambores - todo uma espécie de instrumentos subversivos. Os disfarces não tinham conta. Eram varinas e minhotas às dúzias, campinos, cow-boys, palhaços, leiteiras com as suas bilhas de folha luzente, polícias sinaleiros, velhas alcoviteiras, ciganas, bailarinas. Agora perpassava uma ama de leite toda refastelada nos braços de um galucho; logo atrás um marquesinho do século XVIII arrastava a Pompadour empoada; acolá era o Timpanas de parelha com a Severa; além perdiam-se o Fausto e a Margarida loira, de tranças pelas costas. Um húngaro solitário oscilava aos encontrões da turba... Houve todavia um par, acima de todos, que me interessou: pierrot e columbina. Um par vaporoso que não se desunia, feliz, em constante redopiar. Ele vestia um cetim azul e esmaecido, com enormes rosetas negras e tinha uns olhos cor da noite que rebrilhavam, em contraste com o vermelho e alvaiada da face. Ela sorriu... As serpentinas riscavam o espaço, cruzando-se como os fios duma teia. Voavam cenouras e rabanetes de papel. E o jazz-band não fraquejava. Estava ali para fazer barulho... Através do tumulto sem termo e sem nexo, espargia as rajadas, aringa no centro da Zululândia, aos sopapos no zabumba, com espirros metálicos dos pratos, uivando desumanamente pela boca dos saxofones... Todavia, as folhas tantas, deixei de ver o meu par adejante. Não que se velasse, pois sempre o divisei à tona daquele ondear... Que destino levara? Fora-se? Naufragara!... Porque a vida é feita de surpresas terem acabado para eles as nigromancias do acaso... Decidi-me a um giro explorador, arrostando os ímpetos truanescos, que zumbavam da nossa compostura e dos editais. Mão irreverente salpicou-me com um jato policromo de papelinhos... Não foi em vão a minha viagem temerária. Ao cabo de fadigoso rebuscar, esfuracando aqui e além os dois tunantes - pierrot e columbina. Em bem agourara. Estavam divorciados! Columbina, a columbina graciosa, com o seu saio de gaze, tufado e curto, deixando ver as pernas estreitadas por um maillot que as tornava de jaspe, continuava o mesmo entontecido vaguear de há instante; - e o sorrir dos lábios parecia um febril e alado... Levava-a um lord triunfante e pançudo que atulhava de chocolates... Pierrot choramingava. Via-se só. Não era um queixume langoroso como o dos seus irmãos de outrora, desferindo o alaúde, de olhos erguidos para a melancolia do lar. Não. Choramingava porque já não tinha confettis e porque lhe doíam os pés. Columbina e pierrot contavam tanto um ao outro, sete anos...
Condições de acesso
Comunicável.
Cota atual
C3.
Cota original
ML-1211.
Idioma e escrita
Português.
Características físicas e requisitos técnicos
Estado de conservação: regular.
Data de publicação
29/11/2019 16:28:25